terça-feira, 16 de março de 2010

DEMENE II

Quanto mais eu ando,
Mais vejo estrada
Mas se eu não caminho
Não sou é nada
Se tenho a poeira, como companheira
Faço da poeira meu camarada.
(Geraldo Vandré)

Se, em termos simbólicos, a citação acima se aproxima muito das minhas viagens, em termos reais ela não têm relação nenhuma com a viagem que eu acabo de fazer. Não havia estrada, tão pouco poeira, e meu camarada era o Robson, um amigo de faculdade.
Assim, seguindo a mesma logística que funcionara bem na primeira viagem, realizada seis meses antes, descemos em Manaus, tomamos um barco de linha até Barcelos, arrumamos um barquinho, colocamos nele nosso motor de popa e estávamos com a voadeira na água dois dias após sairmos de São Paulo.
Os bancos de areia expostos do Rio Negro, que avistávamos desde a saída em Manaus, preconizavam rios secos e uma navegação mais difícil. Por outro lado poderíamos contar com as praias dos rios, o que facilitaria muito nossos acampamentos além de tornar tudo muito mais seguro.
Tudo no barco, saímos às 8 da manhã seguindo fielmente os trilhos do GPS quando, ainda no Rio Negro, antes mesmo de alcançar a bacia do Rio Demene sentimos, sob o casco do barco, o primeiro banco de areia. O choque não chegou a nos desequilibrar, mas foi o suficiente para que nos preocupássemos bastante com nossa sorte e com a velocidade do nosso avanço. Naquelas condições teríamos que diminuir a velocidade, escolher os caminhos por entre bancos de areia que se formavam segundo uma geometria que não conseguiríamos desvendar naquela viagem.

Por mais advertidos que tivéssemos sido sobre a vazante desses rios durante dezembro e janeiro, não acreditamos que um rio daquele tamanho, com o volume d’água que conhecemos em julho, pudesse secar a ponto de dificultar a navegação de uma voadeira, barco que precisa de um palmo d’água pra cumprir sua tarefa.
O Demene e o Araçá nascem na divisa com a Venezuela e estão, portanto, sujeitos ao regime de chuvas do Hemisfério Norte. Assim, em pleno verão austral, marcado por enchentes históricas em todo o centro-sul, vivíamos ali um período de estiagem, também histórico.
Seguimos cruzando o Rio Negro em direção à foz do Demene na esperança de que lá a situação fosse melhor, de que o nível das águas tivesse mais alto, com melhores condições de navegação. Doce engano. O Demene encontrava-se tão ou mais baixo do que a calha do Rio Negro.
Após o segundo meandro, um grande banco de areia aparece a nossa frente, bloqueando quase totalmente nossa passagem à montante. Começamos a contornar, buscando um canal mais fundo, sem muito sucesso até nosso barquinho encalhar de uma vez. A cena era insólita: andávamos sobre o leito do rio com água pela canela. Não tínhamos nem um palmo d’água necessários à navegação. Tentamos ainda levantar o motor, diminuindo o ângulo em relação à popa do barco o que melhorava mas não resolvia nossos problemas. Naquele momento soubemos que nossos planos para aquela viagem iam, quase literalmente, por água abaixo. Nossas pretensões para aqueles dias morriam naquele banco de areia. Em nenhum momento achamos que o rio seria intransponível, mas sabíamos que naquele ritmo não faríamos o trajeto que esperávamos fazer com os dias que tínhamos.

Seis meses de planejamento, todas as nossas provisões e expectativas por ali ficavam. Seguimos arrastando o barco. Robson puxava por uma corda amarrada na proa e eu empurrava a popa. A água escorria sob nossos pés. Passamos o perrengue daquele banco de areia e, com alguma cautela continuamos até a encrenca seguinte. No ritmo que avançávamos avistamos ao longe um outro barquinho. Enrolamos mais o cabo até alcançá-lo, na esperança de que os ribeirinhos embarcados trouxessem alguma espécie de conhecimento centenário capaz de nos ensinar a navegar melhor por aquelas águas. Tratava-se de um batelão, uma canoa de madeira escavada em um único tronco, emburrada por uma rabeta, um tipo de motor de popa, mais leve, mais versátil e que rende 6,5 HP. No batelão 3 pescadores subiam o rio no mesmo ritmo que nós. Quanto às técnicas de navegação, sem nenhuma surpresa, para a decepção dos mais bucólicos. Tudo o que estava ao nosso alcance era mesmo o domínio sobre o motor à combustão interna e é sobre essa questão que girava a principal rivalidade a bordo. Eu tenho lá meus interesses no assunto e o Robson encerra uma contradição que muito me intriga: o sujeito que hoje é professor, geógrafo, mestrando e trotskista, outrora fez Ensino Médio no SENAI, nos anos 90 e não consegue olhar para uma peça de aço sem pensar na sua fabricação no torno mecânico. Afora isso alguma noção de cinemática nos permitia calcular nossa velocidade e consumo, projetar nossa autonomia e prever o ponto mais à montante que poderíamos alcançar, o que não era nada animador.

Seguimos viagem ao lado dos ribeirinhos até convencê-los a nos ensinar a pescar. Foi aí que sentimos que o esporte salvaria nossa empreitada. Com a ajuda deles venho o primeiro peixinho, o segundo e preparamos o jantar em conjunto: nós entramos com o arroz e eles com o peixe. Dormimos contando histórias.

Pela manhã, ao planejar o perrengue do dia seguimos nossa tendência dicotômica de pensar o mundo: se não conseguiríamos acessar a primeira natureza do médio e alto rio Demene, que entrássemos então no mundo da cultura e usássemos aqueles dias para conviver, conversar, trocar com os ribeirinhos que navegam e realizam suas vidas, pelas águas do baixo Demene, entre a foz e as poucas comunidades que sobrevivem antes do médio curso.
E assim foi durante o café e por todo aquele dia quando decidimos dormir duas noites no mesmo acampamento.
No dia seguinte continuamos nosso perrengue encontrando outros longos e difíceis bancos de areia no meio do caminho. No mais difícil deles, já se ia mais de uma hora desembarcados e com o pé na água, quando o Robson, que sempre ia na popa grita ao ver uma raia passar por ele. Eu, no susto eu caio pro barco, pego a câmera e faço o registro que começava a salvar nossa dignidade na viagem. Arraia de água doce? Na Amazônia? Eu ainda duvidava do que via quando Robson punha à disposição seus conhecimentos enciclopédicos discorrendo sobre a história natural do bicho.
Ao fim do segundo dia, aportar na areia se mostrara tarefa tão difícil quanto navegar. Avistávamos as intermináveis praias de uma areia incrivelmente brancas àquele horário do dia, mas não conseguíamos chegar até eles pois bancos de areia submersos impediam que chegássemos até as áreas secas. Não conseguíamos amarrar o barco nem pisar em lugar seco.
No entanto, se A Geografia Serve antes de mais nada para fazer a Guerra, haveria de servir também para nos ajudar a encontrar algum lugar para acampar. No entanto a velha questão do método assombrava nossa tarefa e caímos mesmo no tentativa e erro até que, depois de cerca de uma hora procurando, Robson pela praia e eu de barco pelo rio, o sujeito me acena, indicando que ali havia de se conseguir aportar. Seguindo o pequeno canal que se abria por entre os bancos de areia consegui aportar nosso barquinho. A noticia era boa demais e se acabou em breve. Ali havia sido acampamento de caçador e os cascos de tartarugas assadas ainda encontravam-se entre a areia. Ao nosso olhar urbano os casquinhos davam conotações sinistras ao lugar de paisagem tão incrível e nos afastamos o quanto conseguimos dos restos da chacina. Eu, com meu olhar tão vegetariano não me conformava com a morte dos bichinhos, enquanto o Robson me constrangia com seus arguntos pós-modernos: "o inferno são os outros", "vá trabalhar em ONG", dizia ele, de modo a fazer eu me sentir constrangido, além de tudo.

Com o sol se pondo começamos o trabalho de terra. Montamos acampamento, jantar, cachaça, e o que mais se fazia nessa viagem: conversa. A profissão, a infância, o casamento, o dinheiro pouco, o medo de avião...
No dia seguinte, ficamos esperando a água passar e com ela uma família de ribeirinhos, no mesmo perrengue que nós.


Lá se iam um casal, quatro meninas, um cachorro e meia dúzia de filhotes de tracajá, (tartarugas), que a essa época do ano se reproduzem nos bancos de areia e que foram colhidos no caminho. A família era da comunidade Bacquara, distante quatro dias de viagem de Barcelos, no rio Aracá que naquela época do ano só é acessível por barcos muito pequenos, como os nossos. Dos quatro filhos apenas um havia nascido em Barcelos, os outros três na comunidade que não chegamos a conhecer.
A logística de deslocamento por toda aquela região nos intrigava ainda mais a partir do contato que tínhamos com os moradores. Por mais próximos que pudéssemos estar da chamada natureza, ainda que já secundarizada, estávamos irremediavelmente diante da unicidade técnica: todos ali dependiam suas vidas do motor à combustão, aliás, todos de marcas japonesas.


No dia seguinte começamos a descer o rio Araçá de volta à Barcelos. Assim foram esses dias: dois sujeitos, um barquinho empurrado pelo nosso motor de popa e um rio amazônico, agora quase seco.

2 comentários:

Unknown disse...

É ...e no meio de todo perrengue, o que te deu um pouco de alento?????A Cinemática!!!!Isto sim que é Ciência...E lendo td que vc escreveu lembrei-me do Charles(o Darwin) ....Imagina como deve ter sido difícil!!!Mas vc acabou se adaptando e se pá ...estaría lá até agora, carregando o barco do jeito que desse pra carregar....É amigo o melhor de td isso,que a gente percebe dos seus escritos,é que quanto mais vc conhece esses novos e deslumbrantes lugares, mais parece que vc conhece vc msm!!!E assim o texto do blog e seu escritor vão adquirindo a majestade das experiências e dos lugares visitados!!!Parabéns...vc já merece a próxima...

My dear neighbor disse...

Márcioo. Best prof ever