sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Bacia do Demene

Pra quem já leu relatos anteriores, a mesma conversa: mais uma infantil e fetichizada tentativa de acesso à primeira natureza.
No entanto desta vez nossa região literária envolvia logística mais aprimorada, cartografia mais precisa e a difícil tarefa de aprender a navegar, única forma de deslocamento na Amazônia.
Passa então que descemos, um camarada e eu, em Manaus ao meio dia e às 6 da tarde, depois de muita correria atrás dos insumos, estávamos no porto de São Raimundo, embarcados em um recreio para Barcelos, 400 km Rio Negro acima.

Depois do perrengue e tensão de andar em Manaus levando quatro malas, duas mochilas, 7 galões de combustível e um motor de popa, as 35 horas no recreio pareciam uma boa forma de descansar. Aí aquela viagem de gringo. Todas as horas no recreio, a imersão, o rio negro...
Naquela montanha de conversa jogada fora, produto dos quase dois dias à incríveis12 quilômetros por hora no rio negro, ouvíamos a mesma coisa que se repetiria por todos os lugares em que passamos: que nossa viagem estava fadada ao fracasso, que não seria possível para nós, dois estrangeiros, navegar sem um prático ou ao menos um caboclo eu conheça bem os rios.

É claro que nós contávamos com o GPS e com toda a sorte de tecnologias de informação espacial, o que era difícil de explicar e impossível de entender. Mas, se outrora essa auto-suficiência me orgulhava, agora me punha numa condição de prepotência que eu não precisava ali.
Na Amazônia todo mundo é ribeirinho. Seja o das comunidades, seja os citadinos. Todo mundo conhece rio, vive do rio. Lá eu não precisava fugir de guarda-parque, ignorar guia, pular a cerca de parque nacional... Lá eu conseguiria um caboclo que me levaria pro mato numa outra relação com dinheiro, sem precisar me blindar dos discursos de eco-sustentabilidade, ou preservação sócio-cultural. A Amazônia, em todas as suas contradições, se mostraria, ainda, de verdade.
Só ali eu percebi que quando eu substituí, no meu planejamento, o caboclo pelo GPS eu também trocava o conhecimento de campo pelo de gabinete, o saber do outro pelo meu e assim negava qualquer possibilidade de aprender alguma coisa. Nisso eu fazia o que todo o Brasil faz em relação à Amazônia: desconsiderar seus moradores. Quando se pensa em Amazônia não se pensa em gente. No máximo se pensa em cientistas e na carência deles, mas não se pensa em quem vive ali... Em grande medida era o que eu também fazia.
Acontece que tudo estava pronto e eu também não poderia negar minha intenção de me virar sozinho na bacia mais desabitada do noroeste do amazonas.
Acordamos na alvorada de sexta-feira, com a buzina do barco e todo mundo desmontando as redes e arrumando as coisas pra desembarcar em Barcelos.

Em pouco tempo estávamos na pousada do Seu Macedo, na beira do rio negro. Com meia hora de conversa tínhamos o bote e nossa voadeira estava pronta, na água, para o nosso primeiro ensaio. No dia seguinte nosso teste de fogo seria atravessar 52 quilômetros de ilhas fluviais ao longo do Rio Negro e achar a foz do Demene, na outra margem. Isso durante a maior cheia dos rios desde 1953 onde tudo se confunde e o leito se descaracteriza completamente. Eu, sinceramente, não conseguia pensar em uma combinação pior de fatores.
O motor pesava muito pra nossa carne pouca e carregá-lo tornava-se tarefa penosa. Depois de algum tempo colocamos o motor no barco e, já cansados, começamos nossa empreitada.
Do alto do barranco Seu Macedo e seu neto assistiam nossa destrambelhada, desajeitada mas até que competente tentativa de navegar o barquinho. Meu meticuloso companheiro pensava tanto antes de fazer qualquer coisa que até fazia careta.


Depois de perceber que quando se vira o leme para um lado o barco vai para o outro e que os dois precisam remar ao mesmo tempo se quiserem ir para o mesmo lugar, começamos a avançar.
Com o motor ligado saímos então à sudoeste, procurando fazer o caminho que repetiríamos no dia seguinte.
O fato é que realizamos nosso teste com algum sucesso e eu iria para a cama com uma euforia que só os ansiolíticos conseguiriam baixar.
No dia seguinte a água do amazonas começara a fazer efeito em organismo paulista, o que me deixava mais tempo no banheiro do que fora e isso atrasou consideravelmente nossa saída.
Com o rio cheio tínhamos muito pouca opção de acampamento e saindo às 10 da manhã já não alcançaríamos naquele dia os bancos de areia que eu havia cartografado.
Com o sol da Amazônia à pino abastecemos nossos galões com os 300 litros de gasolina que calculamos e seguimos em direção ao Demene.
Depois de uma hora contornando as ilhas, sempre guiados pelos vetores do GPS alcançamos a foz do Demene, rio sobre o qual eu lia desde fevereiro de 2006.
Impossível agora era imaginar algo funcionando tão bem. Barco, motor, GPS. Todo o aparato técnico criado por nós ao longo da história permitia uma velocidade de deslocamento impensável antes dos motores à combustão interna. Enquanto Robson tocava o barco e o colocava em cima da linha que tracei em casa sobre as imagens de satélite e tudo batia zero.
A cada curva de rio os cliques no mouse passava a ter um significado diferente e todos os finais de semana dedicados ao planejamento da empreitada agora passavam a valer à pena.
Toda a paciência que a Jana teve ao me ver no computador nas noites de sábado agora subiam o rio comigo.
Meu projeto, por mais desgastada que essa palavra esteja ,agora se realizava. As ilhas sumiam e o Rio Negro apresentava-se imenso, abrindo-se assustadoramente em um único canal.

O Demene nasce na divisa com a Venezuela, na vertente oposta ao Orinoco e percorre 600 quilômetros de floresta até sua foz, no Rio Negro. Sua bacia hidrográfica deve ser maior que muito país europeu e consiste na área mais longínqua da Amazônia. Em 1993 a EMBRAPA embarcou uns 30 pesquisadores em um barco laboratório e subiu parte do rio. Os relatórios estão na internet. Meu primeiro acesso foi a 3 anos atrás quando me sobrava tempo e me faltava dinheiro. Daí então a idéia de jirico de repetir e ampliar o caminho da EMBRAPA a bordo do nosso barquinho, o que fazíamos naquele momento.
No segundo meandro do rio um jacaré-açú faz a sua e logo à frente uma serpente cruzando o rio.
Às duas da tarde cruzamos a única comunidade de ribeirinhos de todo o Demene e ali decidimos parar. Robson encontrava-se obsecado pela castanha-do-pará e fez uma senhora descascar meio quilo delas enquanto versava sobre suas qualidades nutricionais e assim evocava as riquezas naturais da nação.
Decidimos então pousar ali e continuar subindo o rio no dia seguinte. Robson encontrava-se mais conversador do que o de costume e percebi que reservava sua timidez apenas para os grandes centros. Perguntava sobre todas as frutas, árvores e animais conhecidos da comunidade e confrontava as informações com seu conhecimento enciclopédico. Lá Robson comeu um peixe local e eu, mais enjoado, um atum enlatado.

A noite caiu e abrimos o notebook para planejar o percurso do dia seguinte. Agora era a minha vez de apresentar meus mapas e confrontá-los com as informações caboclas dos nomes dos rios e as distâncias entre eles. Aí, por meio de fotos, tentamos reconstituir nosso modo de vida em São Paulo, oportunidade de ouvir a risada espontânea e gostosa de toda a comunidade ao saber que eu morava em uma casa de 3 metros de frente, o que lhes parecia incomensurável. Risada que só acabou quando eu achei as fotos que mostravam que aquilo era verdade. Quando a bateria do notebook se foi os homens se retiraram para jogar dominó sobre a tampa de uma geladeira de isopor, no terraço da casa de madeira. Fomos dormir, pelo último dos próximos dias, ainda sob o céu do hemisfério sul.
Pela manhã então despedimos da comunidade e de todas as formas humanizadas da paisagem e tocamos sentido norte. Às 11:37 alcançávamos a latitude zero, o que foi amplamente festejado à bordo. Durante as 9 horas de barco com motor aberto que faríamos naquele dia a Amazônia se mostraria de perfil como se mostra de cima: monocromática, monotemática, monótona. O ruído absolutamente constante do motor também reforçava a coisa, o que para mim, particularmente, é ótimo.


Nos afastávamos a um ritmo muito maior do que as minhas previsões mais otimistas. Nosso 25HP voava, tudo andava bem e eu, que agora pilotava sentia-me tão concentrado com poucas vezes na vida.. O silêncio no barco denotava o sucesso do avanço. Paramos apenas duas vezes para transferir para o tanque a gasolina dos galões.

Às três da tarde o GPS acusava a foz do cuieiras, afluente da margem direita, e um boto mucuxi surgiu, parecendo indicar o caminho. Pretendíamos alcançar ainda naquele dia uma formação de arenitos, conhecida localmente como serrinha, e esse seria nosso ponto de acampamento. Pelas nossas contas chegaríamos com o sol indo embora, o que nos fez enrolar o cabo e fazer uma média de 20 milhas, o que são aproximadamente 36 km/hora, que na água é coisa pra burro.

Às 5 e meia a visão da serrinha na proa do barco, despontando após um meandro do rio, é comemorada. Avistávamos o que víamos por foto em uma incursão da EMBRAPA feita em 1993. As serrinhas são Inselberg’s. São morros testemunho, pois como sugere o nome testemunham um relevo do passado. Há tempos toda a região era mais alta. Todo o entorno da serrinha foi erodido, os sedimentos se foram rio abaixo, mas a serrinha, por algum motivo, permanece.

Continuamos subindo o rio até que o nosso navegador percebeu que a serrinha havia ficado para trás e não havia ponto nenhum em que pudéssemos acessá-la sem abrir uma picada. Aí a noite desmoronou, começamos a pegar toco pelo caminho o que fazia levantar nosso motor e nos assustava. Decidimos então, já sem luz, aportar em uma pequena prainha que resistia à cheia do Cuieiras.
A primeira noite no inferno verde da Amazônia justificaria seu codinome. O calor era insuportável, mesmo durante a noite e mosquitos de todas as qualidades serviam-se à vontade, sem cerimônia. Os conhecimentos do Robson sobre as doenças tropicais e sua insistência no assunto só nos preocupava ainda mais com a idéia da Malária. Dormi ouvindo o sujeito inventariar todos os insetos da região e as doenças a eles relacionadas.
Durante o café da manhã uma ariranha faz a sua descendo, graciosamente, o Cuieiras olhando-nos atonitamente. Já não mais avistávamos nenhuma forma na paisagem produto do trabalho e a ruidosa fauna reforçava em nós a sensação de ingressar no mundo dos elementos naturais. Os gritos de araras, os roncos dos macacos, o barulho dos peixes rompendo a superfície da água. Tentamos ainda, sem sucesso pescar alguma coisa, numa linhada improvisada.
Depois do sol das duas horas, coisas no barco, descemos o rio em direção à serrinha, procurando um ponto em que o trecho da picada fosse o menor possível. Doce ilusão. Abrir picada no facão não é fácil para braços de professores. Avançar, se não era impossível era, desanimador. Dentro da mata o dossel encobria o morro, nos tirava a direção e a poças de um metro de água acabaram por frustrar nossa tentativa de alcançar o afloramento rochoso.
Subindo o rio novamente a situação começava a piorar. Com a cheia navegávamos sob a copa das árvores e sobre os seus troncos e recorrentemente o motor batia e nos preocupava. Por algumas vezes o motor chegava a morrer e quando isso acontecia também afogava. Os minutos que passávamos com ele desligado trazia uma angústia enorme e nossas piadas, uma constante a bordo começavam a escassear, embora em alguns momentos fossem inevitáveis. Se por outras vezes na história dependemos nossas vidas do motor à combustão interna nunca isso havia ficado tão evidente.
Mais algumas horas rio acima decidimos aportar, desta vez ainda com sol. Ali passamos uma noite. Noite meio aperreada. Montamos o acampamento e com uns 30 minutos na barraca a gente ouve um bicho grande cair na água a uns 10 metros da barraca. Isso e a falta de fogo por conta da madeira molhada nos fez dormir um uma luz acesa e um olho aberto.
No dia seguinte, em rápida reunião decidimos que continuar subindo o rio poderia ser arriscado demais. O motor pulando a cada toco que pegávamos nos preocupava.

Abandonamos então as possibilidades de enxergar a Serra do Araçá e passamos a descer o rio. Em ponto à jusante da serrinha achamos terra firme e montamos acampamento. Ali a paisagem do Cuieiras se torna ainda mais tórrida. A formação vegetal assume feição de restinga litorânea entrecortada de palmeiras que lembram em muito as veredas do cerrado, em pleno continente amazônico. Isso nos dava possibilidade de andar, coisa que não fazíamos há dias. Numa pequena pernada vimos rastros de cateto, anta, onça. Parece pouco, mas não é. Saber que o bicho passou a pouco por lá dá uma sensação incrível. Uma por saber que ele passou mesmo e que pode estar perto. Que isso ainda existe. E outra por essa incrível noção de simultaneidade em história: nós localizados por satélite e o bicho lá, andando..


Ali passamos mais alguns dias e começamos a voltar para o meio técnico do Rio Negro e de lá todo o caminho de volta para casa.
Chegamos em Barcelos com o sol se pondo. Marcelo um paranaense que mora em Barcelos e pretende trabalhar com turismo, nos viu aportando e veio nos receber. Contou então das previsões de toda a cidade sobre a nossa incursão. Ao nos ver sair tão desajeitadamente, sem ninguém que nos guiasse e ainda de colete salva-vidas (o que seria mais ou menos usar cinto de segurança nos anos 80) toda a gente desacreditava no nosso êxito e menos ainda no nosso retorno.
Robson invocava o bandeirantismo paulista do século XVIII, procurando de alguma forma nos associar a ele e com isso salvar um mínimo de dignidade.
Viagem sem precedentes essa: perrengue, técnica, barco, planejamento e amizade numa das áreas mais remotas da Amazônia brasileira.