sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Bacia do Demene

Pra quem já leu relatos anteriores, a mesma conversa: mais uma infantil e fetichizada tentativa de acesso à primeira natureza.
No entanto desta vez nossa região literária envolvia logística mais aprimorada, cartografia mais precisa e a difícil tarefa de aprender a navegar, única forma de deslocamento na Amazônia.
Passa então que descemos, um camarada e eu, em Manaus ao meio dia e às 6 da tarde, depois de muita correria atrás dos insumos, estávamos no porto de São Raimundo, embarcados em um recreio para Barcelos, 400 km Rio Negro acima.

Depois do perrengue e tensão de andar em Manaus levando quatro malas, duas mochilas, 7 galões de combustível e um motor de popa, as 35 horas no recreio pareciam uma boa forma de descansar. Aí aquela viagem de gringo. Todas as horas no recreio, a imersão, o rio negro...
Naquela montanha de conversa jogada fora, produto dos quase dois dias à incríveis12 quilômetros por hora no rio negro, ouvíamos a mesma coisa que se repetiria por todos os lugares em que passamos: que nossa viagem estava fadada ao fracasso, que não seria possível para nós, dois estrangeiros, navegar sem um prático ou ao menos um caboclo eu conheça bem os rios.

É claro que nós contávamos com o GPS e com toda a sorte de tecnologias de informação espacial, o que era difícil de explicar e impossível de entender. Mas, se outrora essa auto-suficiência me orgulhava, agora me punha numa condição de prepotência que eu não precisava ali.
Na Amazônia todo mundo é ribeirinho. Seja o das comunidades, seja os citadinos. Todo mundo conhece rio, vive do rio. Lá eu não precisava fugir de guarda-parque, ignorar guia, pular a cerca de parque nacional... Lá eu conseguiria um caboclo que me levaria pro mato numa outra relação com dinheiro, sem precisar me blindar dos discursos de eco-sustentabilidade, ou preservação sócio-cultural. A Amazônia, em todas as suas contradições, se mostraria, ainda, de verdade.
Só ali eu percebi que quando eu substituí, no meu planejamento, o caboclo pelo GPS eu também trocava o conhecimento de campo pelo de gabinete, o saber do outro pelo meu e assim negava qualquer possibilidade de aprender alguma coisa. Nisso eu fazia o que todo o Brasil faz em relação à Amazônia: desconsiderar seus moradores. Quando se pensa em Amazônia não se pensa em gente. No máximo se pensa em cientistas e na carência deles, mas não se pensa em quem vive ali... Em grande medida era o que eu também fazia.
Acontece que tudo estava pronto e eu também não poderia negar minha intenção de me virar sozinho na bacia mais desabitada do noroeste do amazonas.
Acordamos na alvorada de sexta-feira, com a buzina do barco e todo mundo desmontando as redes e arrumando as coisas pra desembarcar em Barcelos.

Em pouco tempo estávamos na pousada do Seu Macedo, na beira do rio negro. Com meia hora de conversa tínhamos o bote e nossa voadeira estava pronta, na água, para o nosso primeiro ensaio. No dia seguinte nosso teste de fogo seria atravessar 52 quilômetros de ilhas fluviais ao longo do Rio Negro e achar a foz do Demene, na outra margem. Isso durante a maior cheia dos rios desde 1953 onde tudo se confunde e o leito se descaracteriza completamente. Eu, sinceramente, não conseguia pensar em uma combinação pior de fatores.
O motor pesava muito pra nossa carne pouca e carregá-lo tornava-se tarefa penosa. Depois de algum tempo colocamos o motor no barco e, já cansados, começamos nossa empreitada.
Do alto do barranco Seu Macedo e seu neto assistiam nossa destrambelhada, desajeitada mas até que competente tentativa de navegar o barquinho. Meu meticuloso companheiro pensava tanto antes de fazer qualquer coisa que até fazia careta.


Depois de perceber que quando se vira o leme para um lado o barco vai para o outro e que os dois precisam remar ao mesmo tempo se quiserem ir para o mesmo lugar, começamos a avançar.
Com o motor ligado saímos então à sudoeste, procurando fazer o caminho que repetiríamos no dia seguinte.
O fato é que realizamos nosso teste com algum sucesso e eu iria para a cama com uma euforia que só os ansiolíticos conseguiriam baixar.
No dia seguinte a água do amazonas começara a fazer efeito em organismo paulista, o que me deixava mais tempo no banheiro do que fora e isso atrasou consideravelmente nossa saída.
Com o rio cheio tínhamos muito pouca opção de acampamento e saindo às 10 da manhã já não alcançaríamos naquele dia os bancos de areia que eu havia cartografado.
Com o sol da Amazônia à pino abastecemos nossos galões com os 300 litros de gasolina que calculamos e seguimos em direção ao Demene.
Depois de uma hora contornando as ilhas, sempre guiados pelos vetores do GPS alcançamos a foz do Demene, rio sobre o qual eu lia desde fevereiro de 2006.
Impossível agora era imaginar algo funcionando tão bem. Barco, motor, GPS. Todo o aparato técnico criado por nós ao longo da história permitia uma velocidade de deslocamento impensável antes dos motores à combustão interna. Enquanto Robson tocava o barco e o colocava em cima da linha que tracei em casa sobre as imagens de satélite e tudo batia zero.
A cada curva de rio os cliques no mouse passava a ter um significado diferente e todos os finais de semana dedicados ao planejamento da empreitada agora passavam a valer à pena.
Toda a paciência que a Jana teve ao me ver no computador nas noites de sábado agora subiam o rio comigo.
Meu projeto, por mais desgastada que essa palavra esteja ,agora se realizava. As ilhas sumiam e o Rio Negro apresentava-se imenso, abrindo-se assustadoramente em um único canal.

O Demene nasce na divisa com a Venezuela, na vertente oposta ao Orinoco e percorre 600 quilômetros de floresta até sua foz, no Rio Negro. Sua bacia hidrográfica deve ser maior que muito país europeu e consiste na área mais longínqua da Amazônia. Em 1993 a EMBRAPA embarcou uns 30 pesquisadores em um barco laboratório e subiu parte do rio. Os relatórios estão na internet. Meu primeiro acesso foi a 3 anos atrás quando me sobrava tempo e me faltava dinheiro. Daí então a idéia de jirico de repetir e ampliar o caminho da EMBRAPA a bordo do nosso barquinho, o que fazíamos naquele momento.
No segundo meandro do rio um jacaré-açú faz a sua e logo à frente uma serpente cruzando o rio.
Às duas da tarde cruzamos a única comunidade de ribeirinhos de todo o Demene e ali decidimos parar. Robson encontrava-se obsecado pela castanha-do-pará e fez uma senhora descascar meio quilo delas enquanto versava sobre suas qualidades nutricionais e assim evocava as riquezas naturais da nação.
Decidimos então pousar ali e continuar subindo o rio no dia seguinte. Robson encontrava-se mais conversador do que o de costume e percebi que reservava sua timidez apenas para os grandes centros. Perguntava sobre todas as frutas, árvores e animais conhecidos da comunidade e confrontava as informações com seu conhecimento enciclopédico. Lá Robson comeu um peixe local e eu, mais enjoado, um atum enlatado.

A noite caiu e abrimos o notebook para planejar o percurso do dia seguinte. Agora era a minha vez de apresentar meus mapas e confrontá-los com as informações caboclas dos nomes dos rios e as distâncias entre eles. Aí, por meio de fotos, tentamos reconstituir nosso modo de vida em São Paulo, oportunidade de ouvir a risada espontânea e gostosa de toda a comunidade ao saber que eu morava em uma casa de 3 metros de frente, o que lhes parecia incomensurável. Risada que só acabou quando eu achei as fotos que mostravam que aquilo era verdade. Quando a bateria do notebook se foi os homens se retiraram para jogar dominó sobre a tampa de uma geladeira de isopor, no terraço da casa de madeira. Fomos dormir, pelo último dos próximos dias, ainda sob o céu do hemisfério sul.
Pela manhã então despedimos da comunidade e de todas as formas humanizadas da paisagem e tocamos sentido norte. Às 11:37 alcançávamos a latitude zero, o que foi amplamente festejado à bordo. Durante as 9 horas de barco com motor aberto que faríamos naquele dia a Amazônia se mostraria de perfil como se mostra de cima: monocromática, monotemática, monótona. O ruído absolutamente constante do motor também reforçava a coisa, o que para mim, particularmente, é ótimo.


Nos afastávamos a um ritmo muito maior do que as minhas previsões mais otimistas. Nosso 25HP voava, tudo andava bem e eu, que agora pilotava sentia-me tão concentrado com poucas vezes na vida.. O silêncio no barco denotava o sucesso do avanço. Paramos apenas duas vezes para transferir para o tanque a gasolina dos galões.

Às três da tarde o GPS acusava a foz do cuieiras, afluente da margem direita, e um boto mucuxi surgiu, parecendo indicar o caminho. Pretendíamos alcançar ainda naquele dia uma formação de arenitos, conhecida localmente como serrinha, e esse seria nosso ponto de acampamento. Pelas nossas contas chegaríamos com o sol indo embora, o que nos fez enrolar o cabo e fazer uma média de 20 milhas, o que são aproximadamente 36 km/hora, que na água é coisa pra burro.

Às 5 e meia a visão da serrinha na proa do barco, despontando após um meandro do rio, é comemorada. Avistávamos o que víamos por foto em uma incursão da EMBRAPA feita em 1993. As serrinhas são Inselberg’s. São morros testemunho, pois como sugere o nome testemunham um relevo do passado. Há tempos toda a região era mais alta. Todo o entorno da serrinha foi erodido, os sedimentos se foram rio abaixo, mas a serrinha, por algum motivo, permanece.

Continuamos subindo o rio até que o nosso navegador percebeu que a serrinha havia ficado para trás e não havia ponto nenhum em que pudéssemos acessá-la sem abrir uma picada. Aí a noite desmoronou, começamos a pegar toco pelo caminho o que fazia levantar nosso motor e nos assustava. Decidimos então, já sem luz, aportar em uma pequena prainha que resistia à cheia do Cuieiras.
A primeira noite no inferno verde da Amazônia justificaria seu codinome. O calor era insuportável, mesmo durante a noite e mosquitos de todas as qualidades serviam-se à vontade, sem cerimônia. Os conhecimentos do Robson sobre as doenças tropicais e sua insistência no assunto só nos preocupava ainda mais com a idéia da Malária. Dormi ouvindo o sujeito inventariar todos os insetos da região e as doenças a eles relacionadas.
Durante o café da manhã uma ariranha faz a sua descendo, graciosamente, o Cuieiras olhando-nos atonitamente. Já não mais avistávamos nenhuma forma na paisagem produto do trabalho e a ruidosa fauna reforçava em nós a sensação de ingressar no mundo dos elementos naturais. Os gritos de araras, os roncos dos macacos, o barulho dos peixes rompendo a superfície da água. Tentamos ainda, sem sucesso pescar alguma coisa, numa linhada improvisada.
Depois do sol das duas horas, coisas no barco, descemos o rio em direção à serrinha, procurando um ponto em que o trecho da picada fosse o menor possível. Doce ilusão. Abrir picada no facão não é fácil para braços de professores. Avançar, se não era impossível era, desanimador. Dentro da mata o dossel encobria o morro, nos tirava a direção e a poças de um metro de água acabaram por frustrar nossa tentativa de alcançar o afloramento rochoso.
Subindo o rio novamente a situação começava a piorar. Com a cheia navegávamos sob a copa das árvores e sobre os seus troncos e recorrentemente o motor batia e nos preocupava. Por algumas vezes o motor chegava a morrer e quando isso acontecia também afogava. Os minutos que passávamos com ele desligado trazia uma angústia enorme e nossas piadas, uma constante a bordo começavam a escassear, embora em alguns momentos fossem inevitáveis. Se por outras vezes na história dependemos nossas vidas do motor à combustão interna nunca isso havia ficado tão evidente.
Mais algumas horas rio acima decidimos aportar, desta vez ainda com sol. Ali passamos uma noite. Noite meio aperreada. Montamos o acampamento e com uns 30 minutos na barraca a gente ouve um bicho grande cair na água a uns 10 metros da barraca. Isso e a falta de fogo por conta da madeira molhada nos fez dormir um uma luz acesa e um olho aberto.
No dia seguinte, em rápida reunião decidimos que continuar subindo o rio poderia ser arriscado demais. O motor pulando a cada toco que pegávamos nos preocupava.

Abandonamos então as possibilidades de enxergar a Serra do Araçá e passamos a descer o rio. Em ponto à jusante da serrinha achamos terra firme e montamos acampamento. Ali a paisagem do Cuieiras se torna ainda mais tórrida. A formação vegetal assume feição de restinga litorânea entrecortada de palmeiras que lembram em muito as veredas do cerrado, em pleno continente amazônico. Isso nos dava possibilidade de andar, coisa que não fazíamos há dias. Numa pequena pernada vimos rastros de cateto, anta, onça. Parece pouco, mas não é. Saber que o bicho passou a pouco por lá dá uma sensação incrível. Uma por saber que ele passou mesmo e que pode estar perto. Que isso ainda existe. E outra por essa incrível noção de simultaneidade em história: nós localizados por satélite e o bicho lá, andando..


Ali passamos mais alguns dias e começamos a voltar para o meio técnico do Rio Negro e de lá todo o caminho de volta para casa.
Chegamos em Barcelos com o sol se pondo. Marcelo um paranaense que mora em Barcelos e pretende trabalhar com turismo, nos viu aportando e veio nos receber. Contou então das previsões de toda a cidade sobre a nossa incursão. Ao nos ver sair tão desajeitadamente, sem ninguém que nos guiasse e ainda de colete salva-vidas (o que seria mais ou menos usar cinto de segurança nos anos 80) toda a gente desacreditava no nosso êxito e menos ainda no nosso retorno.
Robson invocava o bandeirantismo paulista do século XVIII, procurando de alguma forma nos associar a ele e com isso salvar um mínimo de dignidade.
Viagem sem precedentes essa: perrengue, técnica, barco, planejamento e amizade numa das áreas mais remotas da Amazônia brasileira.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Relato Noroeste da Argentina

DE MENDOZA AO NORTE
Não era a primeira idéia mas virou um Road Movie total. Todas as horas na estrada. Meio Paris Texas, meio Mad Max. A única variável dos insumos que de fato importava era o diesel. Viagem besta, na verdade. Difícil explicar. Seria besta de verdade se a estrada não me remetesse a tantas coisas, se dirigir não me permitisse me distanciar do vivido, entrar no pensado. Sei que rasgar todo esse chão me faz um sentido incrível, sei lá porque. Reflexão xucra, pequena, meio infantil, mas é no que eu vejo graça.
Passa que embarcamos os meninos com minha mãe e o Marcelo em Mendoza na véspera do ano novo e tomamos a estrada ao norte. Ali deixávamos os meninos e também as cidades.Durante a parte urbana da viagem, Buenos Aires e Mendoza, todo meu esforço de compreensão da realidade esteve voltado para criar uma maneira de fazer meus filhos pararem de brigar. Esses 10 dias, portanto, estão desprezados no relato.De Mendoza, no pé de serra, pegamos a estrada de novo e, enquanto a Jana dormia, eu pensava que desta viagem, para as outras que eu fiz, algumas coisas mudaram. As minhas incursões pelo planalto central brasileiro, afora todas as outras viagens que eu havia feito na vida só se fizeram, fantásticas como foram, na precariedade. Precariedade minha e dos lugares por onde andei, e na precariedade, propriamente, estava a viagem. De ônibus, à pé, de gol.E, por mais que isso me agradasse, por vezes me orgulhasse, não era o que eu vivia ali. Um mínimo de honestidade me fazia ver que 2008, pra mim, se trouxe conquistas importantes, trazia rupturas consideráveis e com elas, perdas.

Lá eu estava de Toyota, GPS novo, Câmera nova e um cartão de crédito o que, em outras palavras, significava meu nome limpo. E ainda, o mais incrível, a certeza de emprego para o ano seguinte. Há um ano, tudo o que eu precisava pra viajar era álcool e pilha pro GPS. Um carburador novo pro gol seria um sonho impensável.
Contudo ali estávamos e rumávamos ao norte pela ruta 40. Os vastos campos se alargavam e a vegetação diminuía o porte; as árvores sumiam e tudo o que era vivo resumia-se a arbustos, touceiras e a pequena fauna que corria entre eles e por vezes cruzava a estrada.

DO CENTRO AO NOROESTE DA ARGENTINA
Da província de Mendoza entramos em La Rioja e tomamos a ruta 60, procurando por dois parques nacionais argentinos: Talampaya e Ishigualasto. Outro dia de estrada, outra estrada interminável e nós à 100 km/hora, no máximo. A Hilux é lenta, fato. Fato que fica mais claro nas estradas argentinas, sobretudo quando os ônibus nos ultrapassam. Isso diminui a velocidade do nosso deslocamento, aumenta nosso tempo na estrada e quase nos irritava. Nas vezes em que isso acontecia me consolava pensar que levamos 6 mil anos de história pra vencer a velocidade do cavalo e não seria eu que reclamaria dos 90-100/hora, mesmo que os caminhões nos superassem. Dormimos em Villa Union, cidade próxima e que servia de sede à administração dos parques. Naquela noite já se percebia a relação daquele lugar com os outros. A cidadezinha era bem invocada para o que se propunha e os parques mais ainda. Daí pra frente tudo ficou mais osso. Hotéis mais caros, carros mais novos: o parque havia, em algum momento, sido considerado “patrimônio da humanidade”, lia-se isso pela cidade inteira, e isso explicava a inflação do lugar.No dia seguinte estávamos lá, na portaria do parque que cobrava, 40 pesos pela entrada, e outros 85 por pessoa, em um tour de 4 horas na Kombi da empresa concessionária, que te dava direito a incríveis 30 minutos de caminhada monitorada por trilha demarcada, no interior do parque. A coisa ficava então por 250 pesos, algo como 80 dólares, 200 reais por uma manhã de visita à natureza (sic).Não precisa de muita obra de pensamento pra concluir que alguma coisa anda muito enviesada na relação homem-natureza e, sobretudo, na relação homem-homem que se produzia naquele espaço-tempo. ?Como algo que é considerado patrimônio da humanidade pode ser acessível somente a uma parcela muito pequena dela? (80 dólares/ casal/4horas) Como o estado organiza uma incursão por uma reserva “natural” em um passeio que me obriga a ficar três horas e meia sentado na Kombi climatizada e me “permite” 30 minutos de caminhada? Não passamos da portaria. Adeus Talampaya.Fizemos um outro parque, provincial, sem a alcunha da UNESCO e, portanto, mais barato: o tal do Ishigualasto. Ali caros 70 pesos nos davam a chance de acessar as feições da paisagem produtos da erosão sobre rochas sedimentares, basicamente arenitos, que denotavam parte do nosso passado geológico, com atenção para o triásico e, por isso, guardavam presença fóssil dos primeiros dinossauros. A mesma vegetação agora era emoldurada pela pré-coordilheira de La Rioja que subia 5 mil metros ao fundo na paisagem.

DE VILLA UNION À CATAMARCA
De La Rioja entramos na província de Catamarca e de fato as coisas ficam mais interessantes. Catamarca já é a Região do Noroeste Argentino (NOA) que tanto buscávamos. Seria o equivalente ao nosso nordeste: mais precário, mais pobre, mais bonito, mais hard core com distâncias igualmente cavalares. Ali toramos para a primeira cidade com abastecimento e a mais próxima do mundo urbano. Fiambalá é umas dessas poucas dezenas de cidades do mundo como São Pedro do Atacama ou Lençóis, na Bahia. Cidade que agrega mochilas de todas as partes do mundo rico. Onde noruegueses e suecos se encontram e as línguas latinas são estrangeiras, mesmo na América Ibérica. Fiambalá servia de base urbana para a saída aos maiores picos do noroeste argentino: o Cerro Bonete com 6759 o Pissis com 6882.
Além de base material para empreitadas às altas altitudes, Fiambalá abrigava também os discursos em relação às montanhas. Na verdade consistiam, ao meu ver em algumas versões pós-modernas para o “chamado da montanha”.Aí então a coisa ficava mais engraçada. Ouvia-se, todas as formas de narrativas criadas por nós em relação às pobres montanhas. As mais óbvias e enviesadas ficavam mesmo por conta do “desafio pessoal” de alcançar o topo, da superação.. aquela coisa de montanhista, e nisso aproximava-se muito daquele papo surfista da onda perfeita (sic), das forças da natureza... Narrativas mais sofisticadas também habitavam, na alta temporada, a pequena cidade. Nessas outras o monoteísmo predominava e fundia-se Deus e natureza. Nada novo, nem tão previsível: todo profeta na história que se preze, de Moisés a Maomé, passando pelo nosso Cristo, teve lá alguma revelação nas montanhas, ou percebeu que esse seria um bom lugar para tê-las.Eu nisso tudo só ficava mais impressionado: como chamar de natureza, ainda, lugares tão impregnados de significados? Tão coberto de intencionalidades, seja lá de quem for. Mais do que nunca, só conseguia pensar essa montanha como uma relação entre os homens. Algo que, se foi produto de processos naturais, geológicos, hoje é muito mais produto de significações, alvo de narrativas, objeto da indústria de equipo, enfim...

Dos 1800 aos 4700
E lá fomos nós em busca do sagrado, da superação, do chamado interior... Subiríamos naqueles dias até laguna verde, a 4200 metros antes chegando até os 4700. Deixamos o asfalto aos 3200 de altitude e até lá tudo bem. A partir daí o que se chama de Puna, ou mal de altitude começa atacar, primeiro a Jana, e algumas centenas de metros acima, a mim. Pra Jana uma dor de cabeça, forte, pra mim, uma tontura, leve, mas insistente. A paisagem muda totalmente. A partir dos 4000 metros somem as touceiras e a vida parece desaparecer. Tudo fica muito hostil e apesar de o GPS indicar que é possível rola um certo medo.Dali para frente, o frio era intenso, o vento absurdo e todo ambiente extremamente hostil. Minha parca experiência de acampar em ambientes tropicais de nada serviria em alta montanha e as sensações térmicas aos quais estávamos submetidos não encontravam precedentes para os corpos viventes no nível do mar.Depois de duas horas de trilha, de subidas muito íngremes avistamos a laguna de aparejos e junto a ela, ao longe, Flamingos. A paisagem de fato é extremamente singular, os mares de montanhas circundando os altiplanos, as lagunas de um azul muito intenso nas porções mais baixas.

Percebemos que sair do carro era uma tarefa árdua, que recorreria certo planejamento e incorria em algum risco. No entanto essa conclusão só veio depois de algum perrengue: a primeira visão de flamingos nos fizera sair do carro de maneira completamente destrambelhada e não levamos agasalhos suficientes nem pra uma brisa tropical. Assim o primeiro pé de vento quase nos derruba e meus dedos começaram ficar congelados. A Jana não podia mais ouvir falar em flamingos e tudo o que queríamos era algum tecido sintético. Ainda assim eu saltava sobre a rala vegetação que livrava meus pés da água gelada permitindo me aproximar do centro da lagoa, com a câmera entre as mãos, tentando algum registro das tais aves.

Ali era mais difícil ainda aceitar a associação entre Deus e natureza. Pra mim a aproximação mais aceitável seria com o diabo. O ambiente se mostrava completamente hostil e nos sentíamos completamente dependentes dos sistemas técnicos que nos levaram até lá. Enquanto meus dedos ameaçavam congelar e a fotografia não mais resistia à tremedeira das minhas mãos os flamingos assistiam, impassíveis, as minhas tentativas de equilibrar-me naquele solo e manter meus pés secos. A surpresa ficou por conta do ninho que eu quase chutei: estavam se reproduzindo.

De volta ao carro continuamos à leste até perceber que nossa tentativa de acampar naquelas altitudes era totalmente domingueira. Alta montanha requer planejamento, disposição, obstinação, grande dose de paciência e, na minha opinião, uma capacidade de reflexão muito pequena sobre o que se está fazendo. Não era definitivamente nosso caso e então, retornamos. Na volta, o tal do apunamento, mal causado pela escassez de oxigênio, volta a nos incomodar e tudo fica bem punk. A Jana agora vomitava e começamos a duvidar que chegaríamos em Fiambalá naquela noite. Eu contava a relação entre metros andados e os metros descidos e a coisa parecia andar em um ritmo muito ruim. Não baixávamos nunca. Já sem luz do sol buscávamos pelos trilhos da ida, sempre com ajuda do fiel escudeiro GPS. Esse, entre nós, era o único que não demonstrava cansaço. A pobre Hilux sentia muito a combustão incompleta, produto da mesma escassez de oxigênio e fumaçava muito. Mesmo durante a noite, quando o vento estava à favor, via-se a nuvenzinha preta, produto da não queima de parte do diesel. No entanto só fui entender isso na volta, conversando com moradores e mecânicos. Àquela altura acreditava que a fumaça era o motor pedindo água, ou o descanso que não podíamos dar, e isso só aumentava minha preocupação.
Contudo, ainda que aos poucos, avançávamos e continuávamos a fazer o que só se fazia naquela viagem: seguir. Dali pro asfalto e depois pra Fiambalá onde procuramos a mesma pousada de dias antes. Ali, a senhora nos deu um chá pra puna que melhorou consideravelmente nossa tontura, poupando-nos de ir receber oxigênio no posto de saúde da cidadezinha, o que eu já vislumbrava.

DE FIAMBALÁ À ANTOFAGASTA DE LA SIERRA

No dia seguinte, acordamos sem hora e, crentes de o perrengue da viagem tinha ficado por conta do dia anterior seguimos, por caminhos alternativos à Antofagasta de Lá Sierra, cidadela 200 km ao norte. Segundo as cartas que levamos e as trilhas do GPS o caminho era possível e essas eram todas as informações que reunimos sobre a travessia.
Tomamos então o norte e a estradinha surpreendia a cada horizonte. Via de regra subíamos por antigos caminhos incas. Pequenas casas lembravam muito a feição do nosso sertão nordestino, como o tradicional aceno de crianças que ainda se encantam de ver um carro passar, coisa definitivamente rara por aquela região. Atravessávamos campos floridos, vales mais encaixados, topando sempre com casa de morador, o que reforçava em nós a visão do bom selvagem, e regatava um pouco essa nossa sensação de natureza amiga. Incríveis dunas de uma areia muito branca e fina surgiam pelo caminho.

Mas essa nova impressão duraria poucas dezenas de quilômetros. Terminando a subida da escarpa acessamos as porções mais altas e deixávamos para trás os inca-descendentes, as flores, as casas e, o pior, a água. A paisagem assumia agora feição tão linda quanto hostil. O solo ficava cada vez mais arenoso e a estrutura do agregado que sustentava a tração do carro tornava-se cada vez mais frágil. Por vezes o carro ameaçava ficar nos obrigando sempre a velocidades mais altas e a não parar nunca, sobretudo no plano.
Enquanto ainda subíamos, a situação já era ruim, mas os horizontes sempre curtos não nos davam a real compreensão da encrenca e, a passos rápidos avançávamos.
A surpresa viria por conta do horizonte que se abriria no entre morros que víamos desde há muito. Quando alcançamos a “cela do cavalo”, feição do relevo que sugere tal forma, e todo um grande deserto se desacortinava à frente compreendi o significado da expressão frio na espinha. A Jana, por mais calma que até então procurasse se mostrar acabou por desistir da pose e perdeu a postura. Ali, abrimos o mapa do notebook e, na ponta do lápis fizemos primeiro as contas mais pessimistas. Estávamos a 90 quilômetros de uma estradinha que ligava duas cidades e, se o carro ali ficasse, em 3 dias de caminhada estaríamos na tal estradinha.
A conta, por pior que fosse, nos tranqüilizava e assim comemorávamos cada quilometro de deslocamento, cada metro de tração. Nos próximos 30 minutos tudo melhoraria muito, e “apenas” 70 quilômetros nos distanciava da estradinha, o que muito nos acalmava. A Jana já não chorava e um solo mais consistente, coberto por cinzas vulcânicas nos animava muito. Naquele ritmo toramos parte daquele deserto até atingir um chamado Campo de Pedras Pome, conhecido na literatura sobre a região que eu li antes da viagem.

Dali tudo ficava muito melhor e na luz do fim do dia alcançamos a tal da estradinha, chegando pela noite em Antofagasta, onde procuramos a hospedaria municipal.
Em Antofagasta ficamos 3 dias, procurando locais mais acessíveis, sítios arqueológicos, e pequenos vilarejos, até deixarmos Catamarca e seguir à sudoeste, já voltando.




SALTA

Chegamos em Salta e ali ficamos. A cidade é lindíssima e só queríamos noites em cama, chuveiro razoável e café expresso. Salta é lindíssima, mas perceberam isso antes de nós: a urbanização da colonização espanhola seria interessante para usos futuros e hoje espanhóis e seus vizinhos retornavam, por outros motivos à àquela porção do território da prata e, via de regra, ocupavam as praças centrais. De fato ali parecíamos estranhos à todos. Não éramos Argentinos, nem europeus. Todos dizem que a argentina está cheia de brasileiros, só se for em Buenos Aires. Nós não vimos nenhum, nenhunzinho, nada. Pra não mentir uma placa do Rio na periferia de Buenos Aires, e só.Ali, antes de encarar os 2700 km, até São Paulo sentamos, como nossos europeus, em um dos restaurantes da praça central e pedimos, em pobre espanhol, algo para comer. O problema foi que a moça, por engano, trouxe uma cerveja ao invés da coca pedida, nos obrigando a ficar mais um dia na cidade.
No dia seguinte, pela manha então, esquentamos o carro no pé da coordilheira para só deixá-lo esfriar em São Paulo, 35 horas depois.